A tesoura dos porcos

A chegada do camião dos porcos era um rebuliço.

Estacionado em contramão, à porta da casa do meu Avô, e logo tratavam de colocar o estrado e os taipais. O estrado tinha umas pontas metálicas, em forma de gancho, que se seguravam na carroceria. Depois, encaixavam-se os taipais, para que os porcos não caíssem ou fugissem pelas laterais.

Aberta a portinhola, era vê-los a descer. Eles iam de enfiada para os currais, que ficavam à esquerda, depois da adega, por debaixo da eira. Os últimos a serem descarregados eram os cansados, que ficavam numa divisão especial, que se situava a meio do camião, num patamar mais elevado.

Os porcos são uns animais muito peculiares. Se teimam, não arredam pé e não avançam. Indo o primeiro, vão todos atrás!

Eu adorava ver este verdadeiro trabalho de equipa do meu Pai e dos seus empregados, debruçado na janela da sala de jantar, ou mesmo no quintal, logo à esquerda, onde estava o tanque de lavar a roupa, uma espécie de quinta da Tia Alice.

Esta fase que eu vivi foi a fase aburguesada do negócio. Este nem sempre foi fácil e o começo foi mesmo duro. Eu ouvia o Arturito a contar que quando era miúdo viajava de comboio para as feiras de gado que havia na zona centro, ou então para as “portas”.

Falar das feiras de gado não tem nada de especial, quem é da minha idade com certeza já foi à Feira da Santana, pelo menos, lá pelos anos setenta, e viu animais para serem vendidos. Já o ir às “portas” era mais curioso. Basicamente, era chegar a uma aldeia, anunciar a presença e bater às portas dos habitantes. Naquele tempo, muitas casas criavam o seu porquito, que depois vendiam.

“-Quanto quer pelo porco? Ofereço duas notas…”


Neste negócio das feiras e das “portas”, o meu Pai tinha os seus intermediários. Não esqueço nomes como Aureliano, Alcino, Raimundo, Zé Júlio, enfim, uma leva de homens leais, embora bons negociantes.

Nos tempos de miúdo do Arturito, os porcos eram reunidos e faziam a viagem para norte em vagões, de comboio. Após a sua chegada, a vara dos porcos ia a pé para a casa do meu Avô.

As coisas foram evoluindo, com muito esforço, até chegaram os camiões e as camionetes, uma ajuda preciosa. Marcas como Leyland, Izuzu e Hanomag ainda me soam nos ouvidos.

Qualquer que fosse a forma como os porcos viajassem, no tempo do calor, os bichos tinham que ter a companhia de alguém. Era preciso ir no meio deles para ver se algum estava a passar mal. Bem-estar animal era coisa que não se falava na altura, era apenas praticado por quem os transportava. O Joaquim Nestor, de quem já falei em outras crónicas, vinha muitas vezes no meio dos porcos, não fosse necessário passar algum deles para o sítio dos cansados. É que cada animal que morresse, era prejuízo de quem o comprou, pois já estava pago! Uma espécie da falha de caixa!

(O Joaquim Nestor nasceu para os lados de Vila Meã. Veio moço para casa do meu Avô e entre nós ficou. Dedicado, mas teimoso. Literalmente, fazia o que queria. Às vezes até parecia que era ele o patrão!).

Os sábados e os domingos de manhã eram guardados para destinar os porcos aos clientes. A semana inglesa era para os outros!

A tarefa era de todos. Eu, por ser mais novo, estava dispensado. Mas os meus irmãos Zé e Rui, não. Aliás, eles chegaram a ir a feiras com o Arturito. 

O exercício de destinar cada porco ao seu destinatário era complicado. Tinha de ser encontrada uma forma de o fazer.

É aí que entra em cena a tesoura dos porcos, como bem lembrou a minha irmã, que por acaso é minha prima, mas para mim é a minha irmã, a Ana Isabel.

Eram desenhados sinais nos pelos dos animais, com número romanos, que identificavam cada um dos clientes. E com o quê? Com a tesoura dos porcos!

Eu sei que não é muito simpático continuar com a história, mas a bem desta crónica tenho que o fazer.

Quando os animais estavam no matadouro, no momento em que eram atordoados para serem abatidos, quem tinha esta missão, colocava em tinta azul escura na perna do sacrificado o mesmo número romano que via no seu lombo. Esta tinta não saía e depois seguia o animal, que o tinha deixado de ser, até ao cliente final.

A tesoura dos porcos era guardada numa bolsa mista de metal e cabedal, com as letras AF gravadas. Passou de bolso em bolso até parar na gaveta do lado esquerdo da secretária do meu Pai. Aqui, foi ajudando noutras funções…

Repousa agora na casa do meu irmão Luís, porventura quem mais mereceu ficar com ela.

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