A avó do peru

Escrever sobre os nossos avós, depois de eles partirem, é sempre doloroso, mas acreditem que ainda é mais doloroso para mim.

O sentimento de perda foi-se desvanecendo e foi crescendo um sentimento de culpa, que me perturba. Serão a escrita e a partilha a poção mágica para exorcizar esta sensação que me esmaga?

No caso da “minha avó do peru”, a dor intensa foi causada pela impaciência e pela pressa com que todos os jovens vivem a sua adolescência e início da vida adulta. Não me permiti aproveitar, com o carinho que ela merecia, a sua sabedoria e a sua doçura.

Era a pressa de chegar a Ofir, porque tinha pressa de vir de Ofir. Era a impaciência de não querer parar no caminho para comprar legumes nas vendedoras de estrada junto à Estela, era ralhar porque se demorava mais a arranjar quando a íamos buscar aos domingos, para almoçar em nossa casa. Pior, era não dedicar muito tempo a ouvi-la.

Se eu pudesse voltar atrás…

(eu tenho vivido com este remorso, apesar de saber que ela me perdoa. O amor dos avós, sei agora, é mesmo incondicional).

A avó do peru Ermelinda Vieira

A minha avó chamava-se Ermelinda e era tratada por “Minda”. Se me perguntarem porque é que os netos lhe chamavam “avó do peru”, já não sei dizer. Durante muitos anos sempre achei que fora por causa daquele sinal que tinha por cima do lábio. Que parvoíce! Provavelmente terá sido porque teve mesmo um peru. É possível que tenha tido, porque lembro-me que tinha um galinheiro, por baixo da escada de pedra, junto ao pombal.

Este lado da família não era propriamente caracterizado por ser de elevada estatura física, bem pelo contrário. A minha avó era pequenina, assim ao jeito da minha Mãe, muito delicada e tranquila.

(Ó Avó, lembras-te que a minha Mãe, quando tu já estavas mais velhota, ralhava contigo para que não costurasses mais, que não tinhas necessidade, que te fazia mal às alergias, e tu dizias sempre que sim?  Mas lá vinha mais uma senhora burguesa para te pedir para costurares um casaco de astracan com gola de vison. Não tinhas culpa, afinal as tuas mãos eram de fada e costuravam milagres!)

A casa onde vivia era modesta, mas toda se abria para um quintal mágico, que o Avô João pintava de flores.

No rés-do-chão estava a garagem, misteriosa, que nós ultrapassávamos, sôfregos, subindo as escadas até um patamar que distribuía à direita para o quarto da Tia Cândida, que passou a viver na casa quando o avô faleceu, e para o quarto de dormir.

Em frente, entravámos no atelier (que nome pomposo!) e logo à direita estava uma mesa larga, onde as peles repousavam para serem trabalhadas.

Virávamos à esquerda e aparecia a casa de banho, seguida da cozinha, até chegarmos à sala de jantar. Quando a Tia Lina e O Tio Ernesto iam lá, pela tarde de domingo, era aqui que a conversa ficava em dia. E então se fosse acompanhada por aquele pudim de caramelo que só a “avó do peru” sabia fazer, melhor ainda! Se bem me lembro, o Tio Ernesto trabalhava na farmácia, quando se subia a Rua Passos Manuel, depois do Coliseu.

Porque é que adorávamos ir a casa dos meus avós? Porque tudo era simples e são as coisas simples que nos encantam.

O meu avô João, homem de Fafe, mais concretamente da freguesia de Passos, era um apaixonado pela columbofilia. Deixava-nos (qual é o avô que não deixa os netos fazerem o que querem) ver as pombas e adorávamos espreitar os borrachos que nasciam e tudo era uma excitação. Propositadamente, não vou explicar o que são borrachos. Assim, obrigo as minhas filhas e a minha neta Leonor a interessarem-se pelas coisas simples. Agora as crianças têm tudo de mão beijada!

Aquele jardim era uma aventura. Que perigo espreitar por cima do muro que se debruçava sobre a Travessa do Campo Lindo, em frente à Casa do Leão, ou espreitar para a casa da Dona Liríope, que ficava ao lado!

Mas a excitação maior era quando nos deixavam dormir na casa da “avó do peru”. Ainda me lembro da cama que nos faziam, ao fundo da cama dos avós. Naquela altura éramos quatro irrequietos rapazes, com os dois mais velhos permanentemente engalfinhados, e para a avó e para o avô era como se fosse nada, tal a alegria em nos terem em sua casa.  

Eu vou querer voltar para os braços da minha Avó! 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O velho comunista olhado por um tipo de direita

Todos os dias regresso a ti

agora eu percebo...