A aposta
As horas de almoço, na minha casa, eram muito preenchidas. A
Nina (era assim que o meu Pai tratava a minha Mãe) preparava o almoço, o almoço
corria tranquilo, mas lá pela uma e meia da tarde começava o corrupio de gente
a assistir ao café.
Fazer o café na minha casa era um ritual. A Nina fazia café
de balão e nós assistíamos ao subir da água e ao descer do café. Colocava a
água no balão, acendia a lamparina e esperava que a água subisse. Quando a água
estava toda na parte de cima, dava umas mexidelas com uma pequena colher de pau,
retirava a lamparina e, pacientemente, o café descia. No entretanto, o aroma
daquele café aquecia-nos a alma!
A sala onde fazíamos as refeições era ao lado da sala de
jantar, que estava reservada para datas mais festivas. A sala era um pouco
estreita e, claro está, a minha mãe ficava mais perto da cozinha e o Arturito
na outra ponta. Esta sala permitia-nos abraçar o jardim, povoado de roseiras e
hidranjas que a Nina tratava com o mesmo carinho com que tratava a sua prole.
O Arturito era um pouco preguiçoso, à mesa. Bem, na verdade,
isto é um eufemismo, porque era meio preguiça, meio machismo. Mas que não se
mexia, é verdade! Podia a garrafa estar ao estender de um braço que ele não se
coibia de dizer: “Oh, Nina, chega-me aí a garrafa”.
Mas voltamos ao tema principal desta crónica, o do corrupio
de gente. Este vai e vem compreendia a Tia Isabel, irmã de meu Avô, a Bina, às
quintas-feiras a Tia Glória, que ia para lá costurar e, até partir, o meu Avô
Artur.
Na minha família fomos sempre educados a respeitar os mais
velhos e, ainda mais, os nossos avós. Quando nos queríamos levantar da mesa
tínhamos sempre que pedir autorização aos mais velhos e era o que acontecia quando
estava lá o meu Avô Artur.
O meu Avô Artur, que também era um bocadinho “piruteco”,
transmitiu ao meu Pai os valores do trabalho, do respeito pelos outros, da
honestidade e … da organização.
Ainda guardo dele os seus livrinhos pequeninos, de capa
preta com a lombada avermelhada, onde, entre as colunas do deve e haver,
registava, religiosamente, todo o tostão que ganhasse ou gastasse. E, valha a
verdade, ele não gostava nada de gastar!
Até um dia.
Um dia teve mesmo que apontar os cem escudos que perdeu na
aposta com o meu irmão Rui. Cem escudos, naquela altura, era mesmo muito
dinheiro!
O caso ocorreu nos revolucionários anos setenta, depois do
25 de Abril. Nesta altura, a sociedade portuguesa descomprimiu e, entre outras
liberdades, apareceu a moda dos cabelos compridos e das calças à boca de sino.
Lá em casa usávamos os cabelos mais ou menos compridos,
porque essas liberalidades guedelhudas não eram para os filhos do Arturito.
Ainda assim eram liberalidades suficientemente guedelhudas para os mais velhos
rabujarem connosco. Mas, na verdade, os nossos cabelos não eram
escrupulosamente compridos nem as nossas calças tinham aqueles triângulos junto
ao calçado, de forma a exponenciar o raio da borda sonante.
No entanto, estavam criadas as condições para que a aposta
fosse feita. O meu Avô Artur apostou cem escudos em como o meu irmão Rui não
era capaz de cortar o cabelo muito curtinho, quase rapado.
O seu azar foi que encontrou um adversário à altura. O meu
irmão Rui é, como o meu Avô Artur era, um homem obstinado, que não vira a cara
a um bom desafio. E cumpriu-se a aposta!
Perece que ainda ouço o meu Avô Artur a dizer: “Oh, pás…”.
Grande Avô!
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